Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a sua famÃlia sentada ao redor da mesa em dia de festa. No centro, encontramos o casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se realiza aquele desÃgnio primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: «Não lestes que o Criador, desde o princÃpio, fê-los homem e mulher?» (Mt 19, 4). E retoma o mandato do livro do Génesis: «Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24).
Aqueles dois primeiros capÃtulos grandiosos do Génesis oferecem-nos a representação do casal humano na sua realidade fundamental. Naquele trecho inicial da BÃblia, sobressaem algumas afirmações decisivas. A primeira, citada sinteticamente por Jesus, declara: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (1, 27). Surpreendentemente, a «imagem de Deus» tem como paralelo explicativo precisamente o casal «homem e mulher». Quererá isto significar que o próprio Deus é sexuado ou tem a seu lado uma companheira divina, como acreditavam algumas religiões antigas? Não, obviamente! Sabemos com quanta clareza a BÃblia rejeitou como idolátricas tais crenças, generalizadas entre os cananeus da Terra Santa. Preserva-se a transcendência de Deus, mas, uma vez que é ao mesmo tempo o Criador, a fecundidade do casal humano é «imagem» viva e eficaz, sinal visÃvel do acto criador.
O casal que ama e gera a vida é a verdadeira «escultura» viva (não a de pedra ou de ouro, que o Decálogo proÃbe), capaz de manifestar Deus criador e salvador. Por isso, o amor fecundo chega a ser o sÃmbolo das realidades Ãntimas de Deus (cf. Gn 1, 28; 9, 7; 17, 2-5.16; 28, 3; 35, 11; 48, 3-4). Devido a isso a narrativa do Génesis, atendo-se à chamada «tradição sacerdotal», aparece permeada por várias sequências genealógicas (cf. Gn 4, 17-22.25-26; 5; 10; 11, 10-32; 25, 1-4.12-17.19-26; 36): de facto, a capacidade que o casal humano tem de gerar é o caminho por onde se desenrola a história da salvação. Sob esta luz, a relação fecunda do casal torna-se uma imagem para descobrir e descrever o mistério de Deus, fundamental na visão cristã da Trindade que, em Deus, contempla o Pai, o Filho e o EspÃrito de amor. O Deus Trindade é comunhão de amor; e a famÃlia, o seu reflexo vivente. A propósito, são elucidativas estas palavras de São João Paulo II: «O nosso Deus, no seu mistério mais Ãntimo, não é solidão, mas uma famÃlia, dado que tem em Si mesmo paternidade, filiação e a essência da famÃlia, que é o amor. Este amor, na famÃlia divina, é o EspÃrito Santo».[6] Concluindo, a famÃlia não é alheia à própria essência divina.[7] Este aspecto trinitário do casal encontra uma nova representação na teologia paulina, quando o Apóstolo relaciona o casal com o «mistério» da união entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 21-33).
Mas Jesus, na sua reflexão sobre o matrimónio, alude a outra página do Génesis – o capÃtulo 2 – onde aparece um retrato admirável do casal com detalhes elucidativos. Escolhemos apenas dois. O primeiro é a inquietação vivida pelo homem, que busca «uma auxiliar semelhante» (vv. 18.20), capaz de resolver esta solidão que o perturba e que não encontra remédio na proximidade dos animais e da criação inteira. A expressão original hebraica faz-nos pensar numa relação directa, quase «frontal» – olhos nos olhos –, num diálogo também sem palavras, porque, no amor, os silêncios costumam ser mais eloquentes do que as palavras: é o encontro com um rosto, um «tu» que reflecte o amor divino e constitui – como diz um sábio bÃblico – «o primeiro dos bens, uma ajuda condizente e uma coluna de apoio» (Sir 36, 24). Ou como exclamará a mulher do Cântico dos Cânticos, numa confissão estupenda de amor e doação na reciprocidade, «o meu amado é para mim e eu para ele (...). Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim» (2, 16; 6, 3).
Deste encontro, que cura a solidão, surge a geração e a famÃlia. Este é um segundo detalhe, que podemos evidenciar: Adão, que é também o homem de todos os tempos e de todas as regiões do nosso planeta, juntamente com a sua esposa dá origem a uma nova famÃlia, como afirma Jesus citando o Génesis: «Unir-se-á à sua mulher e serão os dois um só» (Mt 19, 5; cf. Gn 2, 24). No original hebraico, o verbo «unir-se» indica uma estreita sintonia, uma adesão fÃsica e interior, a ponto de se utilizar para descrever a união com Deus, como canta o orante: «A minha alma está unida a Ti» (Sl 63/62, 9). Deste modo, evoca-se a união matrimonial não apenas na sua dimensão sexual e corpórea, mas também na sua doação voluntária de amor. O fruto desta união é «tornar-se uma só carne», quer no abraço fÃsico, quer na união dos corações e das vidas e, porventura, no filho que nascerá dos dois e, em si mesmo, há-de levar as duas «carnes», unindo-as genética e espiritualmente.
Texto extraÃdo da Exortação Apostólica Pós-Sinodal AMORIS LÆTITIA .
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Fundador Gleydson do Blog Verbo Pai